À flor da pele: memórias de uma psicóloga

24-05-2020

Não é suposto um psicoterapeuta, um psiquiatra, um psicólogo falar sobre si; o foco da intervenção deve ser sempre o paciente, a vida do paciente.

Contudo, sabemos, enquanto seres humanos, que não somos perfeitos: a verdade é que todos nós já sentimos mais para além da conta...acredito que a beleza da terapia também é essa: uma alma que toca outra alma. Seríamos pedras se as vidas dos pacientes não nos tocassem, não nos transformassem.

 Existem muitos psiquiatras que fazem isso de uma forma brilhante: colocar em palavras a forma como transformam vidas humanas e de que forma essas vidas transformaram também as suas para sempre.

 Hoje deixo-vos um pouco da minha história, de uma dessas memórias de transformação profissional e pessoal...

Há um ano atrás terminou uma etapa importante na minha vida.

Na altura, não escrevi...o momento foi apenas sentido; foi uma decisão que levou tempo, muito pensada, ponderada, mas ainda assim com uma despedida emotiva.

 
Quem me conhece sabe o quanto foi difícil deixar para trás um trabalho que para mim era também uma paixão.
Trabalhei como enfermeira em psiquiatria quase 13 anos.


Muitos minutos, horas, meses, anos da minha vida foram passados aqui, nesta casa, na Casa de Saúde S. João de Deus. Uma casa, que a tantos assusta, a chamada "casa amarela", mas que para mim nunca teve uma cor, teve um arco-íris delas.


Olhando para trás, é como se as memórias ficassem paradas no tempo: ficarão para sempre os olhares, os sorrisos, as vozes, as flores, o calor humano com que sempre fui recebida pelos pacientes.

 
Nos últimos anos, a trabalhar como enfermeira e psicóloga em simultâneo já não era uma tarefa fácil...mas eram as vozes deles que me faziam ficar e pensar "vá, mais um pouco". Ouvir: "Filomena não vás, nem que venhas só cá de vez em quando...uma vez por mês...mas não vás já.."

Quem trabalha em psiquiatria, em serviço de internamento prolongado, com pacientes que estão internados há mais de 10, 20, 30, 40 ...50 anos (sim, esta ainda é uma realidade), sabe aquilo que falo; é inevitável se criarem laços, afectos : são Páscoas, aniversários, Natais, passagens de ano, momentos importantes que passamos juntos... a "ética" pede distanciamento na relação enfermeiro-doente...pois sim, mas não seria suposto as pessoas ficarem em hospitais internadas tantos anos, sem visitas de familiares (acreditem, estas instituições fazem de tudo para que isto não aconteça, ligamos para casa, ligamos para as famílias, levamos os pacientes à casa das famílias; mas nem todas podem vir, nem todos podem receber: pais idosos, famílias de longe, familiares já todos falecidos...) e quem resta?! Restamos nós, os profissionais de saúde, e o natal não pode ficar para trás...o espírito de Natal não podia ficar embrulhado debaixo do Pinheiro.

 
"Restamos nós"...


Pois, ainda falei no presente...quando penso na Casa de Saúde, penso que ainda faço parte dela...a verdade, é que farei sempre...fará sempre parte da minha história.


Ficarão também na memória os pacientes e famílias com que me cruzei na equipa de apoio domiciliário, que me recebiam a mim e aos meus colegas como se fôssemos da sua casa; que nos faziam um bolo de aniversário de propósito para comemorar o dia de festa que tinha sido há 8 dias porque queriam apagar as velas connosco.

 
Ficarão também as lembranças de todos os profissionais que se cruzaram no meu caminho, as aprendizagens, as superações, os desafios...todos eles permitiram o meu crescimento enquanto pessoa e profissional.

 
Ficarão os sorrisos também, de todos os colegas, que se transformaram em amigos e que partilharão esta minha viagem bonita a que chamo vida: que me levantavam quando a força não era a mesma, que me motivavam nos dias de maior cansaço, que ofereceram o ombro e o abraço quando as lágrimas surgiam, mas que sorriam o dobro quando as alegrias eram festejadas, que festejam as vitórias como se fossem deles e que se mantém ao meu lado até hoje!

 
Sim, foi difícil, mas tive de tomar uma decisão. Escolher entre duas paixões, entre dois amores...não foi fácil... (podia colocar aqui a banda sonora do Marco Paulo: "Eu tenho dois amores" para animar a cena)


A verdade, é que demorei mais de um ano...para tomar a decisão...em 21 de Maio de 2019, chegou o momento....

A enfermagem em saúde mental e psiquiatria foi uma paixão que, para mim, se transformou num amor...a psicologia: uma psicologia holística em que parte de mim, como enfermeira estará sempre: uma profissional que acredita na integração da saúde física, mental, emocional, espiritual e energética.

 
Faziam-me muitas vezes a pergunta: "o que é que você é enfermeira ou psicóloga?"


Agora, é mais fácil responder: sou psicóloga; mas, acima de tudo sou pessoa!

 
Serei sempre uma pessoa...com paixão e amor por pessoas.


E, independentemente do caminho que escolher...estarei feliz se no meu caminho estiverem pessoas, emoções, sentimentos...seres humanos.

 
É este o meu leme, o caminho que escolhi, a minha missão de vida, o meu propósito...e estou no meu caminho.

 
Obrigada a tod@s que partilharam e que continuam a fazer parte deste meu caminho.

 
Obrigada, pessoas bonitas 💛


P.S.: Existem alguns momentos que foram registados em vídeo, em reportagem pelo Porto Canal, para os mais curiosos fica aqui o link:

 
▶️ https://portocanal.sapo.pt/noticia/12094/


🖊 M Filomena Abreu - psicóloga clínica e hipnoterapeuta